terça-feira, maio 27, 2008

A pedra que avança para o mar...





Um dia informei aos meus:

- Estou de mudança.

- Para onde? – questionaram.

A península Itapagipana, que compõe a IIª região administrativa de Salvador, é formada por 14 bairros entre eles a Ribeira e o Uruguai. Itapagipe significa “pedra que avança para o mar” e para muitos o fato de outrora ser considerada uma ilha deu à comunidade um forte senso de identidade o que faz com que seus moradores migrem dentro de sua própria área, mas dificilmente para outras regiões.

- Vou pro Uruguai. – respondi.

- Como assim? Justo o Uruguai? Com tantos bairros na cidade baixa. Por que não mais próximo da sua casa? A Ribeira é um lugar tão tranqüilo...

Há um clima de interior... O caminhar pela beira da água, as cadeiras em frente às portas das casas, construções baixas e predominantemente antigas, misturadas a monumentos históricos e vistas espetaculares. Em contrapartida também é possível ver a degradação do meio
ambiente, péssimas condições de vida, de educação e de saúde.

- Eu vi a casa, gostei da casa. É pequena e arrumada. E tem um fator muito importante: custa pouco. Além do mais é provisório.

- Ainda assim... Não é um bairro seguro. Tem que ter um maior cuidado... E com relação ao ônibus? Onde você vai pegar? Como vai ser...

Foi aí que comecei a ter medo. Depois de um mês inteiro buscando um lugar
pra acomodar nossas coisas a fim de terminar a reforma da casa, localizada no tranquilo bairro da Ribeira, é complicado dizer não a um apê recém construído e “barato” ainda que não na melhor localização da minha cidade baixa. Então quando me pediram uma opinião, disse sim. E persisti no sim até que as frases que me trouxeram terror começaram. Nesse ínterim o contrato já estava assinado e os móveis já estavam sendo juntados para a mudança.

- Vai ser uma experiência de vida – disse minha mãe uma tarde.

(Entendi que o melhor era acreditar nela.)

O dia mais difícil foi o do primeiro coletivo. O ponto era longe... Quase tão distante
quanto o caminho que faço até a casa do amado – depois de 1 hora e meia de trânsito. Mas eram as pessoas que me davam maior medo. Ou melhor, o desconhecido que me causava medo. Não reconhecia as pessoas. Não reconhecia o lugar. Então, entrar pelas ruelas, passar por pedintes mais necessitados do que possíveis delinqüentes, por faces cuja curiosidade era maior do que qualquer outra coisa me fazia imaginar tudo o que não era. E o andar era rápido.

A primeira volta para casa: 11 horas da noite. Eu e o deserto da rua: cheguei salva.

O primeiro sinal de conhecimento foi a respiração normalizando assim que os pés tocavam a esquina da residência. Dias depois senti a tensão diminuir logo que entrava na primeira rua, próxima à casa. Agora é só chegar na avenida. Passo na locadora de filmes, entre conversa e buscas por outras películas, e retomo meu caminho para casa. Estando fechada, sigo direto sem maiores desesperos. Porém, meu coração ainda acelera quando me vejo muito sozinha.

Os vizinhos são tão noturnos quanto eu. E adoram olhar a vida alheia. Do alto consigo ouvir seus gritos e risos. À noitinha as crianças jogam bola nas ruas e xingam feito adultas que não são - o que me faz lembrar que ensinarei melhor aos meus filhos. São muitos os cães da rua e logo se apaixonaram por meu sol e a seguem noite e dia. E têm aquelas conversas de vizinhos sentados nos passeios, misturados ao lixo e aos ratos.

Não, este não é o melhor lugar. Mas já se tornou a experiência que minha mãe um dia disse..


Hoje fui à casa de uma amiga. Relativamente perto, mas o receio sempre me fez pegar o coletivo (exceto no dia do santo, já contada aqui). Na volta o me perguntaram:

- Ela vai te levar?

- Não, eu vou a pé.

E fui. E cheguei. Sem medos. Descobri que em qualquer ponto desta cidade, a baixa, estarei em meu lugar.


(escrito em fevereiro de 2008)

Imagem: Leandro Estevam. Passeio à Beira Mar, Dezembro de 2006.

11 comentários:

Anônimo disse...

Sempre quis morar sozinho, acho que essa idéia me persegue desde os 10 anos de idade... Mas, ao mesmo tempo tenho tanto medo dos fatores externos, como bem descreveu essa jovem advogada-escritora! Os temores aumentam quando falamos em "cidade alta", onde a vida é bem mais preocupante. Por essas e por outras é que me identifiquei com o belíssimo texto... Bem escrito, com muitos detalhes interessantes e informativo. Parabéns, vou continuar lendo seus escritos.

Unknown disse...

qdo leio seus textos, parece q tomo mais consciência do qto somos amigos, de como estamos mto presentes um na vida do outro...n preciso falar q adorei o texto (e q me reconheci em vários diálogos!rs). Sua mudança temporária de casa, me ensinou a ver outros caminhos, a me perder (literalmente) e me achar nas ruas da nossa cidade, cidade q os outros chamam de baixa.
Saudades da minha amiga, saudades do pôr de sol em sua casa na Ribeira... :)

Morena disse...

Sabe, eu te conheço mas você não me conhece. Por ora, eu moro no interior, mas daqui há um tempo vou pra Salvador e viver o que você vive. E estou com mais medo do que o medo que você teve.
Espero que dê tudo certo com você.
E principalmente comigo! rs

Shidus disse...

Muito interessante é a vida diaria das pessoas que compoem este cenário.Curiosos e de vez em quando alheios...
E ainda de forma significativa o maior peso na escolha de uma moradia ainda é o transporte comunitário.De fato é ainda um grande problema.

Adorei o texto.

Anônimo disse...

Seu texto é quase um roadie-movie, desses tipo E sua Mãe Também, q vc logo se encanta pela história, que embora comece em um determinado local, logo passa por diversos outros contando histórias alheias para formar a história dos personagens principais e , consequentemente, a do filme.

Gostei das sutilezas do texto com personagens q quase ñ aparecem, mas q pra quem conhece tornam a história ainda mais divertida, como "nego", "meu sol" entre outras...

Escreva mais, te faz bem e eu adoro ler, embora demore pra comentar.

Nego.

OBS.: gostei do título que vc deu a foto.

Anônimo disse...

Poxa, há muito tempo não venho aqui, mas sempre que venho tenho ótimas surpresas!
Naum gostei nada dessa sua experiência aí, me deixa muito longe de você.

"Espero que o tempo vôe para que você retorne e eu possa te abraçaar..." (quando você for comprar pão xD)

Unknown disse...

Minha filha sempre me surpreende. Muito bom o seu texto. Claro, coeso, simples, e muito bem escrito. Como disse uma amiga minha ao ler um texto seu que lhe mostrei, um dia espero ver um livro seu publicado.

mari lou disse...

a gente só compreende qdo passa a pertencer.

e o nosso maior medo, talvez, seja nos reconhecermos no outro.

somos todos humanos. o mundo é inteiro, cada coisa resulta d outra. está tudo conectado. por isso, ñ adianta: sou o outro, o outro me é.

adorei o texto. gostei do ritmo, das imagens. bem suas.


bjo!

Mario Poloni disse...

Delícia de ler... Um texto "teletransportante"... que são os melhores!
Bjs

Anônimo disse...

Manu,

Sei que você passou aqui anteriormente e não deixou nenhum comentário. Minhas palavras retratam minha vida e o que penso. Nem sei se gostaria que você escrevesse algo mesmo sem me entender.
Conheço uma moça chamada Celeste, em salvador. Ela disse que conhecia uma menina que escrevia muito bem e me indicou seu blog.

Grande abraço,

Renata Carvalho Rocha Gómez disse...

Hey menina...
Clicando por ai encontrei seu blog !
Bacana seu espaco !
Um beijo