quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Quem era ela?

Personagem 1

Quem ela era?
Ondas batiam na beira d’água acompanhando o ritmo do carnaval. Arrepios nos ventres expostos, nas risadas trôpegas, nos brilhos delirantes se faziam sentir, ouvir e ver. Como um telespectador ela assistia a tudo apática. Vez ou outra arrastava uma concha marinha albina arranhando a sola delicada dos pés. Era em si um personagem muito delicado, basta dizer. E melancólico, daquela melancolia boa e gostosa que nos traz um pouco de gozo à vida. Aqueles que a viam, alheia à música ambiente que inundava a praia, não sabiam caracterizá-la. Estavam tão entretidos com seus próprios suores que uma jovem solitária no breu, entre areias e pedras asfaltada, não ocupariam meros segundos de atenção. Todos bailavam atordoados com a mistura de corpos, esfregando a quentura entre mãos bobas e sorrisos fáceis. Do que vale a vida senão de festa?
Quem ela era?
Dessa vez se perguntou na intranqüilidade do pensamento. Um tanto sarcástico - pensou. Não saber de si mesmo... Já não bastava olhar-se no espelho. As respostas há muito não surgiam com o vento e desatinar a vislumbrar sua vida tornou-se triste. Trágico. Encostou-se na areia úmida confundindo cabelos e pêlos. Fingia-se de anjo gesticulando braços e pernas. Para si adquiriu asas. Ao seu redor trotava um cortejo de risos e festa sobre as luzes de uma avenida alegre. Quisera fosse enterro, raciocinou. Amanhã será, e riu com a boca torta. Trocou risos por lágrimas... Ali eram tantos. Tantos rostos estranhos numa felicidade que tardará a findar. Alguns vindos de tantos cantos, d’outros mundos que sempre ousei imaginar. Um dia, porém. Não mais hoje – falou com a boca seca. Não mais nunca – frisou amargando um pranto frágil. Tocara a ultima vez sua viola encostada no canto do quarto azul. Vira a casa encher dos rostos agora tão familiares. É carnaval, gritaram vozes mais afoitas. Enalteceu-se quando lembraram de sua beleza e orgulhou-se quando elogiaram sua inteligência. Antes a vida se resumisse a esses momentos de música e amor. Se assim fosse, talvez as vozes não a atordoassem freqüentemente, não a jogassem num abismo do qual sempre voltava arranhada, abatida e ferida. Um dia talvez nem dele voltasse e seu corpo seria encontrado inerte entre as brumas. O durante traria tanto sofrimento que enlouqueceria de vez, pensou. À sua frente o oceano serpenteava em ondas selvagens, intranqüilo, inquieto e voraz. Do que vale a vida senão de liberdade?.

Personagem 2

Caminhava apresada. Trocando os pés, tropeçando em chãos, alta e baixa. Entoava bem alto o refrão com a voz um tanto tremula em mais uma de tantas tentativas de encobrir o desespero. Medo era seu segundo nome, um fato muito bem apresentado durante sua infância, adolescência e agora enquanto adulta desgastada pelo tempo. Perdeu-se de todos, sabia. Onde estavam? Onde estariam? Em que direção? Perguntas sem respostas. Devo me controlar para não gritar. Não grite, eu peço. Não grite... Olhou para os lados. Rostos bandidos apenas. O terror havia tomado conta do seu corpo. Era mais uma crise. Mais uma que a levaria para cama por horas ou dias talvez. Questionou a sua ida a tal lugar. Ponderou algumas vezes a lista de razões, desde a visita de amigos até a necessidade de não ficar só. De todo modo venerava o contato físico e sabia disso. Mas não assim, não numa solidão que dá medo. Ver-se sozinha, perdida de todos os rostos amigos, tendo ao seu redor um mundo desconhecido. A aproximação de corpos suspeitos fez sua alma espremer-se no corpo. Analisando o ambiente desceu por uma rua poluída de gente, asas nos pés, coração a mil e correu em direção à praia. Ofegante, as mãos no joelho aliviando o peso nas costas, à sua frente o mar pulsava. Lentamente escorregou e sentiu a areia tocar sua pele. Rezou à Deusa que lhe protegesse. Pediu a Deus. Chorou lágrimas secas, mas hálito convulsivo. Do que vale a vida senão de controle?.

Quem será aquela?, pensou.
Quem será essa?, perguntou-se.


Olharam-se brutas e frágeis. Temidas e aterrorizadas. Menina e mulher. Reconheceram-se pelos olhos apesar de desconhecerem os traços amigos da face. Nunca haviam se visto. E sabiam disso.

Quem será? Tão jovem e tão bela. Perdida em dor e em lágrimas, estará machucada?
Quem será? Tão madura e exótica. Perdida em terror, estará machucada?

Eram estranhas a si, porém reais. A tábua na beira de um precipício. A ultima mão. O ultimo rosto. Um milagre enviado. Um anjo, pensou a jovem. Um pequeno anjo, imaginou a mulher. E observando o céu, o mar, o brilho carnavalesco, deixaram o silêncio de suas vozes as acalentarem...